terça-feira, dezembro 19, 2006

Matérias

Mais uma manhã sem nada para contar, no comboio a mesma paisagem de todos os dias rotineiros, mas no dia de hoje havia algo particular, o mar, o mar parecia ser constituido de uma matéria gelatinosa, que ondulava consoante a maré, não fazia espuma, o mar parecia ter uma única peça. Tinha adormecido e naquele breve sonho, tinha sonhado com toda a minha vida, e num sobressalto uma voz miudinha que me puxava pelo braço me acordou: Mãe! O pai chegou... pensei para mim, que afinal tudo não passava de um sonho e o tempo tinha passado a correr, voltei a acordar repentinamente, continuava no comboio, com o mesmo cenário de sempre e o sonho do sonho era a realidade antes de ter adormecido. O mar continuava lá, feito da mesma matéria gelatinosa que sempre foi.

sábado, outubro 14, 2006

diz-me

Cá te espero, sentada no mármore gelado dos degraus gasto pelo tempo, pisado pela história, aqui estou eu, o tempo arrefece e aqui sinto cada vez mais a geada, mãos frias coração quente, amor para sempre (?!), e a história repete-se, mais um crepúsculo passado em vão, fito o céu e fixo-me de novo no chão, faltam apenas uns dias e 20 Outonos estarão completos, só mais um número, só mais uma vez que questiono a solidão. Gabo-me de estar sempre rodeada de gente, não passam de vultos e continuando vagueando pela cidade estes aumentam, aumentam mas não os consigo ver. Cá estou eu ainda, observo os pés que por mim passam, o tempo pára mas a rotina não, como quase uma raridade, recebo um sorriso de cumprimento, e o tempo continua, continuo de mãos geladas que procuram por um bolso, pode-se dizer que andei uns 5, 10, 15 kilómetros e cai exausta na cama, acordo atordoada, é meia noite, para além das mãos, os pés ardem em frio e num sobressalto recebo a resposta...

sexta-feira, setembro 01, 2006

descrição

Saio porta fora, o sol já vai alto, fito-o de soslaio e prossigo. Começa mais um dia, não posso dizer que tenha uma vida rotineira, mas ando lá perto, o sol queima, é Agosto e nem sempre vem um vestígio de aragem, primeiro transporte á vista, o mesmo gesto repete-se, com a companhia das notas musicais em forma moderna, CD, companhia de todos os dias, rodeada de gentes, ando sempre sozinha. Pé no chão, faço um esforço para não cair, tento despertar mais um pouco, mentalizo-me que mais um dia ai vem, e nas linhas férreas espera mais um meio que me fará prosseguir, neste escasso mês, na minha correria igual à do ano inteiro por poucos corpos me cruzo, um mais bronzeado que o outro, calções ou fato usado mesmo sendo novo, um fato igual a tantos outros que não conta nenhuma história durante o ano todo, mas em Agosto talvez conte uma história de escravidão ou de solidão. Paragem a paragem cruzo-me com a paisagem habitual, tão familiar há tantos e tantos anos, dou-me por feliz por ver o mar todos os dias, estando ele com um ar que inspirou as pinturas do Romantico ou somente um mar bucólico que me faz deslizar banco a baixo ou me ajuda a mergulhar no policial que leio, em que este tem como cenário uma praia da costa francesa, em que alguém foi morto e ninguém sabe que o foi. Final da linha, que passa e passa, atravesso o asfalto sobre o qual quando regresso sobre o mês de _Outubro já ao cair da noite, relembro-me sempre, e para sempre será assim, daquela mesma lua e daquelas mesmas pessoas que ela me faz, felizmente, recordar, e é assim, consigo subir mais um degrau sem tropeçar nas poucas pessoas que nos restam, turistas que me dizem quando me sento a seu lado sorry, but my friend is sitting here ao que eu respondo com um largo sorriso oh! I'm sorry e quase automaticamente passo para o banco de trás. Uma semana passou que eu desapareci destas terras, agora uma semana depois, observo os novos cartazes expostos, vejo o que eu perdi na ultima semana, fica para a próxima, miradouros, ruelas, ruelas que são o meu cenário perfeito para passear sozinha, comigo mesma num dia chuvoso de Dezembro, continuamos a subir a rua, lá no cume cruzamo-nos com um outro autocarro, olho para as pessoas sem razão aparente, um senhora já de idade fala com outra que se senta no banco de trás, uma outra senhora de porte trabalhador, lê um daqueles romances de cordel, com uma expressão tão impenetrável, qual a sua sensação? será que queria sentir o que as personagens sentiam? será que ainda sonha? e mais umas outras pessoas seguiam naquele veiculo quase vazio, mais jardins e chego ao meu destino, ai vem mais um dia: sorriso nos lábios ofereço e recebo uns bons dias no rés do chão, tal como se repetem ao entrar no elevador e ao chegar ao 16º andar.
É fim de Agosto e já se começa a perceber uma certa melancolia do crepúsculo de Setembro, aquele clima instável de Setembro, o início das correrias, corro de volta, agora faço um percurso diferente, desta vez não vejo o mar, desta vez vou pelo interior das cidades, cruzo-me com palácios e durmo um bocado durante o caminho. Um encontro e um planear da noite, sair, ir ao encontro das luzes e das enchentes de espaços que não são assim tão pequenos, mas as companhias de longa data fazem-nos abrir um espaço só nosso, e ao chegar á rua o céu é nosso e descemos a avenida, alguns vultos na rua, por alguns vultos passamos, não têm rosto, não sei se teram alma, por ali passam, chegamos perto da areia mas não chegamos a pisá-la. Inspiramos o ar fresco do princípio de Setembro e subimos ruas e mais ruas, adornadas de palacetes que quase invejamos e penso de como a minha casa é pequena, é pequena mas é onde tudo já se passou, mas voltando aos palacetes, fachadas vislumbrantes, uns poderiam ser influenciados pelo Organicismo outros pela arquitectura Romana, quem sabe... liga o motor e aqui vamos nós, são 2 da manhã e amanhã é mais um dia, este foi demasiado longo, antes de adormecer ainda tenho tempo de um pensamento ou dois, de tentar pensar em quem eventualmente possa estar a ter o mesmo pensamento que eu, dou mais uma vista de olhos ao policial, 5 páginas e já mal abro os olhos. Apago a luz, puxo os lençois-padrão-zebra e sigo o meu caminho por montes e vales...



(desculpem ficou um pouco grande, mas é somente um excerto daquilo que penso ao longo do dia)

sábado, agosto 05, 2006

Sobre o Musgo

De pés lavados caminho sobre o musgo que cobre o chão do jardim dos ciprestes, o silêncio não se acanha e a humidade no ar entranha-se nos ossos, elementos simbólicos são louvados por aquele que se ausenta, a morbidez não existe, o que existe é a tacanhez nas vossas mentes que proibe de caminhar por cima dos vestigios de garrafas que fizeram a festa e estancas o sangue que escorre do lado direito do teu crânio mas a mão ensanguentada não se segura e num gesto inquisidor subtrais a dor e deixas-te elevar por um simples olhar que despreza essa situação e o espirito que se esvanece, no presente solsticio és levado de qualquer maneira, da mesma maneira de que desprezavas as forças da natureza afirmando seres superior mas agora não te apercebes de que isso é completamente negado por este teu estado, mas não, não te apercebes pois o teu coração já não bombeia mais o malte vermelho, eu não penso em situação nenhuma, descontinuamente sento-me sobre o musgo á sombra de um cipreste [escondo-me da lua nova] e descanso no jardim das tabuletas.

domingo, julho 23, 2006

Sente aquilo que não vês

e continuo aqui, de rosto escorrido, sobre a cama com o som eterno da ventoinha que refresca o que não pode, olhos fixos no tecto imaculadamente branco, lixívia, o cheiro das mãos antigas, tecto branco, diferente do tecto do outro quarto, sujo, da casa de banho cinza pelado e húmido, da cozinha, um bordeux que conta o que sempre viu e a sala que acompanha um resto de céu, azul angústiante que sofoca quem por ali passa. Então mudo de acompanhamento, temperança é a carta que te sai, e entras no jogo, areia - texturas, escuro - cegueira, incenso - cheiros, eu - cheiros, tu - cheiros, eles - cheiros, guia-te de olhos fechados e encontrarás aquilo que pretendes cheirar, música - sons, escuta, escuta! ouve o murmúrio que te percorre, dá mais atenção, antevê aquilo que nunca quiseste ver, fica, fica eternamente nesse estado assustado de quem nunca quer ficar, de quem quer fugir mas que não quer ir, não te incomodes, vês aquela estante? vazia sim, vazia para ti, o teu novo pedestal, ao pensares que já ninguém te idolatra, enganaras-te, e agora... agora? agora não tens corpo, tornaste-te somente em espírito que por aqui passa.

Un Chien Andalou

como não poderia deixar de ser, aqui está!
Un Chien Andalou de Luis Buñuel e Salvador Dalí 1928

sexta-feira, junho 16, 2006

nenhures

de cinza, de cinza tingiam-se as cadeiras, eu, afundava-me numa delas, recompunha-me, afundava-me, farta, levantei-me, dei três passos em frente, afundei-me na terra, com as mãos de fora, com as mãos de fora alguém brinca com elas, faz-me sentir melhor, a terra em redor inunda-se de um céu magenta cor de mar, espera! espero, espero que seja mesmo assim... espera! esperamos que fique para sempre assim, e não há tempo a perder. Seres sem vísceras chamam por mim, gritam por auxílio, gritam num desespero dormente que acode a mente de quem já cá não anda, anda, anda, vamos! vou prai, por entre frechas e pequenos espaços por onde possa passar, passo, passo a passo, corro, sigo e vingo, vou, voo, caio, resisto, desisto, levanto-me... puxam-me pelas mãos e saio, sento-me e fico.

segunda-feira, junho 05, 2006

Meu coração tardou

Meu coração tardou. Meu coração
Talvez se houvesse amor nunca tardasse;
Mas, visto que, se o houve, houve em vão,
Tanto faz que o amor houvesse ou não.
Tardou. Antes, de inútil, acabasse.

Meu coração postiço e contrafeito
Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido,
Talvez, num rasgo natural de eleito,
Seu próprio ser do nada houvesse feito,
E a sua própria essência conseguido.

Mas não. Nunca nem eu nem coração
Fomos mais que um vestígio de passagem
Entre um anseio vão e um sonho vão.
Parceiros em prestidigitação,
Caímos ambos pelo alçapão.
Foi esta a nossa vida e a nossa viagem.

Fernando Pessoa