sexta-feira, junho 16, 2006

nenhures

de cinza, de cinza tingiam-se as cadeiras, eu, afundava-me numa delas, recompunha-me, afundava-me, farta, levantei-me, dei três passos em frente, afundei-me na terra, com as mãos de fora, com as mãos de fora alguém brinca com elas, faz-me sentir melhor, a terra em redor inunda-se de um céu magenta cor de mar, espera! espero, espero que seja mesmo assim... espera! esperamos que fique para sempre assim, e não há tempo a perder. Seres sem vísceras chamam por mim, gritam por auxílio, gritam num desespero dormente que acode a mente de quem já cá não anda, anda, anda, vamos! vou prai, por entre frechas e pequenos espaços por onde possa passar, passo, passo a passo, corro, sigo e vingo, vou, voo, caio, resisto, desisto, levanto-me... puxam-me pelas mãos e saio, sento-me e fico.

segunda-feira, junho 05, 2006

Meu coração tardou

Meu coração tardou. Meu coração
Talvez se houvesse amor nunca tardasse;
Mas, visto que, se o houve, houve em vão,
Tanto faz que o amor houvesse ou não.
Tardou. Antes, de inútil, acabasse.

Meu coração postiço e contrafeito
Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido,
Talvez, num rasgo natural de eleito,
Seu próprio ser do nada houvesse feito,
E a sua própria essência conseguido.

Mas não. Nunca nem eu nem coração
Fomos mais que um vestígio de passagem
Entre um anseio vão e um sonho vão.
Parceiros em prestidigitação,
Caímos ambos pelo alçapão.
Foi esta a nossa vida e a nossa viagem.

Fernando Pessoa